sábado, março 05, 2005

Pequenina

Já não gostas de mim como gostavas, em pequenina...
Comprava-te bolachas de chocolate só para ver os teus olhos, pele de amêndoa doce, brilharem. Abrias a boca desdentada e gritavas adoro-te avô! É tão fácil comprar a amizade de uma criança. Belas criaturas essas que habitam o mundo. Sentavas-te no meu colo e eu, esforçava-me muito por inventar uma fábula estonteante, que te fizesse voar no mundo próprio da tua inocência mas, no fundo, eras tu quem me fazia sonhar. Não paravas quieta. Sempre a mexer. Causavas-me hematomas nas coxas com as tuas sapatilhas duras. Não importava. Os teus caracóis dourados batiam me nos olhos. Tentava ensinar-te o pouco que ainda hoje sei. Não te conseguia explicar a razão para a Terra ser tão redondinha. Perguntavas-me quem teria sido o homem que havia construído algo tão gigantesco e belo. Que te haveria de dizer? Se calhar sabias mais do que eu. Quando o fim-de-semana terminava e te via a partir à noite, abanando a mão, com os teus pais, ficava triste. A casa perdia o encanto. Maldita a solidão que preenche os meus tempos. Porque partiste? Porquê? Olho para a beirada da lareira, as tuas fotos continuam lá. Olho para o teu antigo cantinho, onde costumavas bordar e aí sim, tu já não estás. O padeiro acabou de trazer o pão quente. Ficavas sempre contente e ias, a correr, buscá-lo, para de divertires a ver a manteiga derreter dentro dele. Eu agora nem o como. Continuo a pagar ao padeiro apenas para não contribuir para o teu desaparecimento. Hoje, não vou escrever mais sobre ti, não quero voltar a ficar deprimido. Hoje em dia já não conheço a minha neta. Os caracóis dourados tornaram-se verdes. O teu corpo está perfurado por muitos pedacinho de metal. É aterrador. Até na língua tens uma dessas coisas que hoje em dia é moda. Ouvi os teus pais a lamentarem-se que até perfuraste os mamilos. Tristes novas realidades estas, que cismam em não caber no meu pensamento gasto e cansado. Vejo, por vezes, desenhos que marcaram definitivamente o teu corpo e que ousam aparecer quando te baixas. Fico estarrecido e empobrecido. Não importa. O que importa é que sejas feliz. Em pequena, brincavas com as minhas rugas, e rias-te muito por não teres também covinhas na cara. Era a pessoa mais importante para ti. Só eu tinha tempo para te dedicar a atenção que precisavas. Todos estavam sempre demasiado ocupados para te contarem uma história. Eras um empecilho que normalmente despachavam para mim e tu adoravas. Brincava-mos no rio, mostrava-te a diferença entre as espécies de árvores, apanhava-mos florzinhas e folhas. Bons tempos. Tempos que não voltam. Hoje vens ter comigo porque os teus pais te obrigam. Agora, para ti, sou um trapo velho. Já nada te ensino. Já não te faço rir. Chegas e metes-te no carro a ouvir barulhos indecifráveis que inexplicavelmente descodificas em música. Quando falas para mim, és ríspida e breve. Não sei que mal te fiz. Agora estou só condenado a esperar pela morte. Declaraste guerra ao mundo. Deves ter razão. No outro dia voltei a fazer-te uma boneca com uns trapos velhos que tinha, amontoados, no quarto dos arrumos. Ficou enorme. Entreguei-ta na esperança de te trazer de volta. Aceitaste-a e olhaste para mim com desprezo. Fingistes estar agradecida. Guardaste-a na mala do carro. Imagino o que tenhas feito com ela... É a actualização dos tempos. É notícia de que já vivi tempo suficiente neste mundo. Já não sou útil. Já não tenho direitos. O pouco respeito que me têm, persiste, apenas, por força do que conquistei no tempo e que ainda não me conseguiram retirar. É isso que eu sou. Um guardião de bens que a todos interessam. Só não abdico deles porque seria encarcerado num lar e aí pereceria. Se não fosse isso atirava-vos com eles à cara. Só agora sei a importância dos valores não materiais. Tarde de mais. O tempo não retrocede. Fiz a asneira que quase todos fazem. Não importa. Daqui a pouco tempo já nada importará. Só mais um bocadinho. Eu aguento bem.
Já não gostas de mim como gostavas, em pequenina...

11 comentários:

Anónimo disse...

tens um dom e isso eu já te disse..e não me canso de repetir..os teus textos tocam bem fundo a alma de quem os lê..este é particularmente bonito, e triste ao mesmo tempo, pois retrata, na minha opinião, um grande flagelo da sociedade actual...por vezes eskecemo.nos que as pessoas velhinhas merecem todo o respeito atenção do mundo..e não são tratadas como tal, infelizmente...mas pronto...não me quero alongar muito..o texto é FENOMENAL!!

parabéns e continua p.f.

xuacks**************DRI*****

Anónimo disse...

Hmm custou me mto ler o texto sem duvida q a primeira parte q descreves dela pequenina no colo do avõ faz me lembrar mto a minha infancia.. mas cresci e n me tornei como a "pequenina" .. :| tocou-me mto o texto.. :
*****Lara

Anónimo disse...

Sabes querido as pessoas normais tem tendencia a quererem crescer muito rapido e usam como marca do crescimento o abandono total de tudo o que gostavam quando eram mais pequenas. Tomam o crescimento como uma mudança. E quando damos por eles (esses seres normais crescidos) já nao gostam de nós (os eternos) E os olhares que eram abrigos tornam-se facadas. Já não há lagrimas nem sorrisos.

É triste ser já idoso e ver os outros a envelhecerem... Tanto que se matam.


De um visão realista (realidade normal das pessoas normais) este texto é muito tocante. Há uma musica que adoro da Mafalda Veiga "velho" a letra é fenomenal e mostra-nos exactamente este mesmo ponto de vista apesar de ser numa visao mais global...

É triste chegar a casa e já não conhecer o teu olhar...

Um beijo
e um bom fim de semana

Cetus disse...

A gente cresce mas não perde sentimento!

Anónimo disse...

Adorei!! já pensaste em escrever um livro? ** ^Erina^

Anónimo disse...

Adorei!! já pensaste em escrever um livro? ** ^Erina^

Anónimo disse...

Adorei!! já pensaste em escrever um livro? ** ^Erina^

Anónimo disse...

Adorei!! já pensaste em escrever um livro? ** ^Erina^

Anónimo disse...

Adorei!! já pensaste em escrever um livro? ** ^Erina^

Anónimo disse...

este texto é dolorosamente real. e dolorosamente triste.
eu já fui pukanina. mas a verdade é que descobri que por vezes o amor não é distribuido de forma igual.
é sim dado a quem mais tempo está com as pessoas. e isso magoa...
nem todas as crianças se tornam pukaninas.

Anónimo disse...

Bem, este teu texto é demasiado trsite mas tão real. N conheci o meu avô paterno, morreu qd o meu pai tinha 13 anos e o meu avô materno morreu qd eu tinha 5 anos. São poucas as recordações q guardo dele mas saõ todas mt mt boas. Era uma pessoa fantástica. Muito especial mesmo. A minha mãe é como ele. Tenho mta pena de n ter convivido mais com ele. Gostava de o ter aproveitado um pouquinho mais. Parabens pelo texto. Está qualquer coisa de fantástico!