sábado, setembro 17, 2005

Facas

Ela esperava ansiosa. Na face surgiam resmunguices matinais, stress pré-saída, mas, escondia toda a bela felicidade de um dia que será bem passado. Enérgica, pressiona-se a não deixar nada. Entrou no carro e, mais depressa do que o “Olá. Bom dia.” foi a saída apressada e agressiva para procurar a máquina fotográfica esquecida. O sol dá ares da sua graça e encandeia um céu enorme de branco azul. Ela entra e sem dizer nada pede por telepatia para não a incomodar e muito menos olhar para ela porque acordou há pouco. Acho que ninguém se dá ao trabalho de apreciar a beleza de um momento pós-acordar. Ela perde-se em toalhetes, cremes e bocejos, escorrida pelo banco abaixo. Dez quilómetros passados e aparece o famoso “Então? Dormiste bem?”. Abano a cabeça afirmativamente. Vinte quilómetros passados e o acordar está quebrado. Lentamente a atenção foca-se em mim. Palavras encadeadas são agora entrelaçadas, correspondidas, seriadas e trocadas. O discurso termina automaticamente aquando da ousadia em repreender-me a condução. Olhei para ela veemente e encerrei conversa, abrandando. O primeiro refrigerante do dia bebido numa tasca. Um velho barrigudo sentado à porta prepara-se para assim passar o seu dia, vendo uns carros a subir a montanha. “Vamos?”. ”Sim.”. Os numerosos maciços cavalos empurram o carro montanha acima. Travo controladamente para salvar um porco que se tinha soltado de um curral qualquer e que agora parava no meio da estrada. Bem grande.
Até está tudo a correr muito bem. Ela está contente por isso, eu também estou, por contágio. O maldito rádio escolhe as músicas. Aproxima-se a terra da Estátua do Basto. A praça da largada dos touros ainda não está pronta. Lá está o Basto zeloso, como sempre. Aproximo-me da curva para o paraíso que poucos conhecem. A velha ponte de pedra sustém-nos impelindo-nos para o outro lado. A vegetação acabou. Dez quilómetros de aridez. A pista de aterragem, construída há dois anos em terra para os aviões de combate ao fogo, está agora inútil pelos regos que as chuvas do ano passado rasgaram. Ao longe vemos os montes queimados e vulgarmente, evidenciamos a desgraça do país. Aproxima-se o destino. Progressivamente penetramos o antigo lugar da trituração real. Longos canais de água delineiam o exclusivo ambiente. O mundo agora é outro e as árvores são especiais. Pena que ela não consiga absorver tal potência sensitiva. Inspiro um bom volume de ar e expiro simetricamente. “Vamos?”. ”Sim.”. O som do fechar do carro ecoa no infinito. Não se vislumbra vivalma. Ali existem pedras e árvores. Apenas isso. Pedras e árvores. Perfeito.
Estamos deitados em cima da mesa de madeira grande. Os nossos olhares violam-nos, mutuamente. Sempre gostou de me despentear. Eu na altura também gosto mas, a ideia muda frente a um espelho qualquer. Acima de nós, elevam-se troncos de dezenas de metros da bela madeira riga. É tudo tão calmo e silencioso. Apenas se ouve o balbuciar do vento, acima das árvores, como um burburinho que se dissolve e contamina o ar. Finalmente suspiro. Tardou. Maldita impossibilidade de satisfação. Puxo-me para a frente e sento-me na beira da mesa. Sinto os seus dedos a calcorrearem-me as costas. Ela tem jeito. Esfrego a cara entre as mãos. A agitação mental retorna e impele-me a renovar algo rapidamente. Contrariada, lá se levantou e seguimos, floresta fora. Encontra-mos um moinho pequenino de pedra. Aproximamo-nos para apreciar tal secular estrutura. A portinha de madeira estava aberta. Estranho. Pensei que eles estivessem sempre fechados. “Entramos?”. “Sim. Se quiseres.”. Empurro a porta vagarosamente e entramos naquele ambiente escuro. Ali dentro cresciam heras e a terra tinha invadido o interior, nada de mais, exceptuando um alçapão aberto recentemente e que convidava mentes curiosas a entrarem para a cave. Claro que o macho poderoso não ia descer degrau a degrau a velha escada de ferro por isso, num belo salto de austeridade parto um pé ao assentar numa pedra lodosa da humidade. Ali fico sentado a resmungar. Ela desce rapidamente e chega cá em baixo e nem para mim olha. Instantaneamente enervado berrei que parti um pé ao qual ela logo me diz que espere. Ebulição automática. “Estás maluca? Eu não me consigo levantar!”. Ela diz-me que em cima da velha mesa de pedra repousam centenas de facas de todos os tipos e feitios. Loucamente, agarro-me às paredes e levanto-me para olhar, incrédulo, tal berrante cenário. Incrível! São mesmo centenas de facas de todos os tipos e feitios. Grandes pequenas, recentes, antigas, enferrujadas, novas a brilhar, partidas, cutelos… Os dois corações palpitam agora descontroladamente. Ela tenta ajudar-me a sair dali para fora o mais rapidamente possível mas, não tem força para me empurrar pelas escadas acima. Ainda por cima nesta zona não há rede para nenhuma operadora de telemóveis. “Toma as chaves e vai rapidamente chamar alguém que nos ajude.”. Lá a vi subir…
Ali estavam facas incrivelmente perfeitas e certamente caríssimas. Por que razão estariam ali? Seria ali o covil secreto de algum carniceiro malévolo? Um arrepio estremeceu-me o corpo. É então que olho para cima e vejo dezenas de buracos nas paredes com bonecos de trapos que me olham fixamente. Todos de todos os tamanhos! Perfeitamente horripilante. Que significariam? As cabeças todas orientadas para mim a toda a volta. Alguém entrou lá em cima. “És tu?”. Vejo umas botas enormes descerem as escadas em ferro. Agarro rapidamente em dois facalhões e preparo-me para luta brutal. O velhote olha para mim assustado e pergunta-me o que estou ali a fazer. Pede-me que baixe as facas pois a intenção dele não é fazer mal a ninguém. Pouso uma ficando com a da mão direita por segurança. Pergunto-lhe se ele não faz mal a ninguém então qual a razão para ter a maior quantidade de facas alguma vez vista. Ele sorrindo diz que trabalha na fábrica de cutelaria da cidade e que sempre que alguma faca sai com um pequeno defeito, o patrão dá-lha e ele traz para aquele moinho que já é da família há muito tempo. Coleccionador de facas. Nunca imaginaria tal. Mais calmo, peço desculpa por ter entrado furtivamente e digo-lhe que tenho o pé partido e que preciso sair dali. Mas. E os bonecos? Que significam? Os bonecos são tradição da região. Antigamente usavam-se para protegerem as casas e para darem sorte. Pousei a faca olhando mais descansado para o pobre velho. Afinal de contas que poderia aquele minúsculo homem fazer contra mim? Preocupado, pergunta se estou bem? Ela acaba de chegar e não encontrou ninguém. O velho olha para ela e ela olha para mim. Diabólica sorri para mim e acena positivamente com a cabeça. O sinal único que só eu conheço. O sinal da irrupção da sua escondida força demoníaca. Um seixo rapidamente deixa inconsciente o velho homem humilde. A perna recupera. Afinal, não parti nada, foi um leve mau jeito. Devagarinho colocamos o pobre homem na mesa por cima das facas. Com umas correntes ferrugentas abandonadas a um canto, amarramo-lo inabalavelmente à enorme mesa de pedra. Tu vais procurar galhinhos que eu vou ao carro. Assim fomos. O garrafão bamboleava ao sabor do movimento do meu braço. Era bizarro. A sonoridade repercutia como que se levasse um oceano engarrafado. Quando cheguei, ela já tinha um círculo de ramos secos em torno do velhote. Para estas coisas ela não perdoa e é mesmo muito rápida. Ali passaram duas horas até o homem acordar. Não teria graça sem a sua perfeita consciência total. Esperneou mas, estava muito bem amarrado. Abri o garrafão e verti um gole no chão exalando o forte aroma a querosene perante o terror da pobre vitima. O cheiro do combustível enovelava o ar como que pedindo a sua presença comburente. É inexplicável a riqueza de sensações que o homem emana. Ela não consegue sentir tanto. Apenas ambiciona um bocado de mal para conseguir retornar à sua bondade remanescente. Mas eu, eu vivo as sensações dele. Aquele gigantesco descontrolo hormonal. Ela aproxima-se de mim sedutora, faz-me uma festa na face e começa a despir-se. Eu ajudo-a. Desaperto o seu casaquinho branco e fresco de verão. As peças de roupa dela são sempre delicadas e levezinhas. O soutien branco resplandecente não esconde a beleza daquele peito que tantas horas de trabalho me cobrou aos olhos. O homem amainou. Olhava agora para ela extasiado. Agarrei-a por trás e soltei o botão que prendia as minhas calças preferidas nela. Brancas. Claro. Brancas. Só poderiam ser brancas. Num ápice escorregaram-lhe pelas pernas abaixo. O homem estava visivelmente muito excitado. Ainda estou por trás dela. As minhas mãos agarram-lhe firmemente os seios e descem até ao seu ventre e até ao seu fim. Ela solta um leve gemido. Ajoelho-me perante ela. As suas mãos agarram maldosamente os meus cabelos. Com os dentes abocanho a renda branca e faço-a descer devagarinho. Contemplei tantas vezes aquele ambiente e, ainda assim me fascina. A perfeição daqueles caracóis. A dedicação na precisão da depilação. É de apreciar todo o esmerar daquela alma para agradar a quem a vê. Afasto-me preparado para ver a sua força. O velho não sabe o que pensar. Ela com os seus dedos finos desaperta-lhe a camisa suja do trabalho. Com uma faca despedaça-a em numerosos bocados de tecido. Um peito cansado pelo tempo aparece. Cicatrizes revelavam um passado difícil e árduo. Cabelos grisalhos enrolavam no seu peito. Suor nascia na testa dele. Ela, altivamente, sobe para a mesa. O velho, mexe-se, impotente. Ela acocora-se perto dele abrindo as suas pernas. O homem aceleradíssimo emana desejo misturado com terror. O olhar dela é assustadoramente belo. Aquelas feições divinamente carregadas. Ali estava ela, a minha ela, aberta a um homem indefeso. Vai começar a cobrança. Tudo tem um preço e ele iria pagar certamente. A sedução agora era agressiva e claramente indomável. Agora restava apenas o descontrolo do monstro mais belo do mundo. Sorrindo verte algumas gotas sobre o peito do homem e acende um fósforo. A adrenalina dele foi disparada no sangue como se as artérias fossem pistões. O fósforo ardeu até meio. Ela esperava atenta pelo desespero do homem e apreciava, delirante, todo aquele momento. O homem sossegou acreditando que ela não faria tal loucura. Ela pousou a chama propagando-a pela carne. Os gritos de horror estremeceram as paredes. Ele contorcia-se loucamente. Reparei que fendas, bêbedas de sangue, abriam-se nos pulsos e pernas onde as correntes estavam. Ela, humilhando-o, urina-o apagando o fogo da sua dor. A carne fervia-lhe. Lamentava-se e chorava. Ela aproximou-se ainda mais e urinou-lhe a face e afastou-se. Desceu. O homem cuspiu e proferiu insultos para um ar que insistia em não o ouvir. Estava muito violento e revoltado. O fogo não teve tempo para provocar mais que um leve ardor. Peguei no garrafão e despejei-o nele ensopando-o. Acendi outro fósforo. O homem entrou em choque. Foi sem duvida o maior terror da vida dele. Só se via desfigurado ou morto. Em segundos viu a vida perto de lhe fugir. Apaguei o fósforo. Soltei as correntes ao agressivo homem e afastei-me. Ele avança para mim ameaçadoramente. Olha para mim e como uma hipnose pára imediatamente e corre para um canto oposto. Olho um pouco mais para ele. Com um lenço perfumado seco-a e limpo-a do seu prazer e visto-a. Ela abraça-me carinhosamente e sobe. Olho uma última vez na direcção dele e subo. Cá em cima seguimos pelo bosque encantado. Adoro mesmo aquelas calças brancas. Ela torna-as únicas. Lavamos as mãos no pequeno fontanário junto ao viveiro dos faisões para anular o aroma a combustível. Fizemos a viagem com muita calma e sossego. A noite foi especialmente carinhosa. Os meus olhos brilhavam, reluzentes, no escuro. E o seu sono ressoava. Ressoava pelo mundo… Sim. Eu sabia que seria um dia bem passado.

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