domingo, outubro 30, 2005

Paixão

Que dia perfeito. Sábado! Tons violeta caracterizam um céu ameaçadoramente chuvoso. O nível de humidade, gigantesco, aveluda o ar e um suave nevoeiro esbranquiça todo o ambiente. Ai que dia perfeito!
Joana acorda e espreguiça-se dentro da cama quente. O quarto continua como sempre esteve. O espelho, o guarda-fatos, a cadeira com a roupa do dia anterior, as mesinhas de cabeceira e as cada vez maiores rachas nas paredes. As trabalhadoras aranhas sempre presentes.
Num instante se lavou e se vestiu. Andou dias a preparar tudo para hoje. Convenceu os pais que iria passar o fim-de-semana com a amiga Mariana para terminar um trabalho sobre a extinção dos ecossistemas. E eles deixaram! Felicidade das felicidades. De tão radiante até pulava. Que maravilha. Dentro de algumas horas estaria nos braços da sua paixão. Há muito que só pensava nele. Todos os seus actos a marcavam indefesamente. No seu corpo cravava-se a acessibilidade ao rapaz. Começara a entrar por ela desbastando um mato que ela sem saber, ergueu e ajudou a destruir. A emoção de estar apaixonada. Sentia-o por todo o lado. Inocentemente, rompia uma por uma, todas as barreiras de protecção ao seu interior. Que importava? Ele é de confiança. Aquele sorriso de tão lindo, não sai da memória. Mal tomou o pequeno-almoço, saiu antes que os pais acordassem. Ele não estava na esquina como combinado. Certamente adormeceu e adormeceu mesmo. Numa cama perto dali, o Mário ressonava descontraidamente. Claro que não ouve os telefonemas da Joana. Duas horas passaram e o lorde acordou. Olha vagarosamente para a janela e vê a luz amena do dia. Lá se levanta, empurrado por não sei quem. A água espalhada pelo rosto desleixado, finalmente dá-lhe vida. Veste a roupa dos dias anteriores e sai para a rua. Lembra-se que o melhor, é levar uma flor senão, nunca mais se safa com tão ingénua alma. Compra a rosa mais barata da Florista Cameira e segue triunfante. A pobre Ju lá estava, encharcada, toda feliz por o ver. Abraçou-o e beijou-o como se fosse a melhor coisa da sua vida. A flor ergueu uma ponte, da mais resistente pedra sobre bases do mais suave algodão. E assim foram de braço dado. Pelo caminho, ele ia gorgolejando elogios banais que nos ouvidos da paixão, caíam como versos requintados da mais sumptuosa poesia. Que bela é a paixão! É? Lá foram para o monte de Santa Catarina, cada um com o seu tipo de felicidade. O rapaz sorria com a facilidade que a paixão lhe trouxera. Que maravilhosas são as mulheres pela sua característica da entrega baseada em pressupostos incógnitos.
Um belo e pequeno rochedo quadrado, jazia no meio de eucaliptos. Assim se sentaram. Assim se beijaram. Elogios básicos ecoavam por todo o lado. O barulho do encantamento dela ensurdecia o coração da sensibilidade. Perguntas de amor encontravam respostas ilógicas. Claro que te amo! Claro que te amo! E a raiva da racionalidade disparou a chuva sobre eles. Tentou afogar aquele fogo maldito construído por jogos maquiavélicos involuntários da existência. Não havia nada a fazer para impedir. Os corpos rebolaram descontrolados pela lama. Sofregamente satisfaziam sentimentos de ilusão. Pequenas pedrinhas e galhinhos magoavam-nos mas, a anestesia corria-lhes nas veias. Gritos ruinosos estremeciam os seres silvestres. E o fogo lá apagou. E as brasas remanescentes lá vieram. Deitados, ofegantes, sobre a bela pedra, olhavam as copas eucaliptais. Devagarinho, gota por gota, a água chuvosa ia arrastando toda a sujidade que aderira às peles fumegantes. Ela diz que quer casar com ele. Ela diz que não pode viver sem ele. Ela diz que o ama, mais que tudo na vida. Ele pensa que ela já está a ir pelos caminhos errados. Ele pensa que ela está a ficar demasiado dependente. Ele pensa que o melhor é acabar com toda aquela pressão. Masculinamente pergunta se foi bom, conseguindo assim, desviar o assunto para ver o resultado. Ela acenou afirmativamente e voltou ao assunto. Joana, tu não sabes jogar este jogo. Já perdeste! Saíram dali. Ela dormiu com ele no apartamento. Acordou em seus braços. Passearam alegremente pela cidade. O Mário tratou-a muito bem. O Mário despediu-se, beijando-a. O Mário nunca mais foi visto por ela. A Joana aprendeu um pouco mais sobre as pessoas. A Joana sofreu bastante. Os meses passaram. Ela notou algo diferente. O seu corpo mostrava-lhe o que ela não queria ver. Uma criatura descia à terra sem ter sido encomendada. Reuniu todas as suas economias e saiu de casa, antes que alguém soubesse. Viveu, viveu e viveu. Ai se viveu… E chegou o dia! Nasce ao mundo a Catarina! Um milagre ter sobrevivido pousada no cimento frio, enquanto a mãe acordava do desmaio num viaduto qualquer da estrada de Barcelos para a Póvoa de Varzim. Quando acordou atou o cordão umbilical com o fio dos seus sapatos e rompeu-o manualmente. Sem se preocupar consigo, embrulhou-o no seu casaco e seguiu nua pela noite fora, sangrando, até à casa dos seus avós e lá deixou a resistente Natália. Os humildes velhotes acordariam no dia seguinte, sem saberem o seu parentesco com tal descoberta, e a receberiam e tomariam conta dela como se fosse sua neta. E era. Perece a bela Joana, passadas umas horas, nua e sozinha a um canto, dentro de uma casa em ruínas com uma morte directa de placenta não retirada e indirecta de paixão. Ali ficou um corpo de vida, rodeado de escombros e aí, muita carne tiveram os ratos. Joana…
Catarina, resistente, afasta o frio de si durante toda a noite. Resiste na caixa de cartão envolvida pelas roupas sujas e rotas de sua mãe. Horas passam, a porta abre-se, os espantos aparecem, os planos de sua mãe, uma vez na vida correram bem... Catarina cresceu, e cresceu muito. Uma força da natureza. Revoltosa era a mais doce das raparigas mas, com a força de um furacão, destroçava corações e defendia-se fortemente contra todos os que ousavam desafiá-la. Ninguém domava a Catarina. O seu avô morreu cansado de tantos anos de trabalho árduo. A sua avó seguiu o mesmo caminho. A Catarina ficou só. Cabelo castanho alourado. Olhos doces de melaço. Muito alta e bem constituída. Ela é a cobiça de qualquer homem.
O Ricardo é um rapaz estúpido. Tem tudo o que quer e salta de cama em cama. Tem o dom de apaixonar, com o seu estilo moderno e a boa aparência que tem. Elas vão girando, uma por uma, sem qualquer ordem ou seriação. Ele gosta de viver assim e não quer saber dos sentimentos dos outros. Catarina há anos que repara nele. Catarina está apaixonada por ele. Catarina tal como quase todas as mulheres, não aprendeu o que é o amor. Catarina só conhece a paixão. Ela pensa que é a paixão que envolve a magia e tudo o que é bonito numa relação. Ilusão, Catarina. Ilusão! Catarina não poderia ter vivido sem já ter sido vítima de tal rapaz. Assim foi, assim deixou de ser, assim voltou a ser, e assim continuou vezes sem conta. Desculpas tão disparatadas justificavam os afastamentos, as aproximações e até mesmo as outras que ela ia descobrindo estar também no jogo… Um dia conheceu o Jorge. Aparecido não se sabe de onde. Uma doçura de rapaz cheio de valores e firmeza de atitudes. Jorge é homem e nunca poderia ter ficado indiferente à beleza da Catarina. Ele gostava de tudo nela. Ele idolatrava os seus defeitos e adorava as suas virtudes. Catarina não sentia nada de mais por ele. Friamente, atirou-o para o saco dos amigos mesmo sabendo todos os sentimentos nobres que ele reunia por ela. A Catarina é uma tonta. Assim continuou como uma parvinha babada por quem não a merecia. E ele tentava as aproximações. Explicava-lhe com o a maior cariz racional, todo o plano sentimental que o envolvia. O pior era que Catarina podia resistir ao Ricardo. Bastava querer. Mas não resistia. Resistia sim ao Jorge. Ele confundia-a porque ela, sabia ver que ele sim era um homem em condições mas, desculpava-se a si própria que não foi ela que decidiu, mas sim o coração. O coração Catarina? O coração? O Ricardo fez-lhe um filho e desapareceu. Catarina deixou os estudos e ali viveu na casa que os seus avós lhe deixaram, com a criança. O Jorge era muito amigo dela e no fundo, agia como pai da criança. Ele trabalhava e investia todo o seu dinheiro nela. Dava-lhe todo o seu carinho. Os anos passaram. Ela nunca assumiu um verdadeiro compromisso com ele. No fundo usava-o como o único conforto que lhe estava acessível. Claro que o Ricardo acabou por voltar... Ele viu-a mais bonita que nunca. Ele não iria desperdiçar mais uns momentos de prazer junto de tão requintado corpo. Afinal de contas, ele sabia bem que ela nunca o esqueceu e que continuava nas suas mãos. E assim foi, ela às escondidas, voltou a cair nele e nas suas desculpas. Tinha voltado mais maduro e assumiria agora a criança e tomaria conta da sua família… Pois… Ela contou ao Jorge e pediu-lhe para abandonar a casa porque não era a ele que o amava. Jorge saiu, perdido. Os dias passaram. O Ricardo andava como um rei no seu território. Tinha tudo o que queria. Era tratado como um deus pela Catarina. Ricardo sabia que a partida não demoraria muito mas, queria gozar ao máximo aquela estadia. Um dia passeavam num belo descampado, longe de tudo e todos e apareceu o Jorge, sem se saber de onde. Banhado em lágrimas disse-lhe: “Com ele, são as coisas lindas como a paixão de adolescente e a irresponsabilidade e desculpa, se apenas te posso dar as coisas chatas como a honestidade, segurança e estabilidade mas, lembra-te sempre de uma frase, antes de decidires entre mim e ele. Posso não fazer arder o teu coração mas, nunca o despedaçarei!”. A Catarina começou a chorar porque ela sabia que estava a proceder errado. Foi ter com o Jorge e abraçou-o. Beijou-o. Pediu desculpa. E sempre a olhar para trás seguiu para o Ricardo…

Catarina? Como te atreves? Sou eu quem escreve esta história! Sou eu o criador do enredo e atreves-te a permitir tal desfecho? Enfureceste-me e vais pagar por toda a tua imaturidade e insanidade sentimental! Agora vais aprender que a magia está no amor e que o amor nada tem a ver com a paixão!

Os céus tornaram-se vermelhos de sangue. As nuvens afastaram-se e um buraco gigantesco abriu-se no céu. O Jorge e o filho da Catarina desapareceram simplesmente como por magia. A maior e mais assustadora das criaturas saiu do buraco. Ela e o Ricardo olham apavorados. Com guinchos estridentes ouve-se o horripilante monstro proferir “Catarina a paixão foi criada por mim para contaminar os sentimentos humanos. No fundo vendeste-me a tua alma. Seguiste o seu caminho e agora, o caminho do seu criador seguirás.”. Com um braço gigantesco e umas garras lânguidas, despedaça aqueles dois corpos irritantes e com um murro megalómano, enfia-os pela terra abaixo.
Fim!

4 comentários:

Anónimo disse...

lembrei me q poderia haver novos textos, e aqui estou eu! e concordo c o outro comentario q aqui tens, o amor e a paixao completam se.. Pode haver paixao sem amor, mas nao pode haver amor sem paixao! Isso é fundamental num relacionamento .. Sem paixao tudo se torna um tédio mais dia menos dia.

*

Anónimo disse...

Espero apenas que nada acabe assim... Apesar de acreditar na dureza das palavras ali deixadas como uma história que praticamente me passou na vida...
Filhos? Não... mas as marcas profundas de uma menina apenas adolescente e enganada... Menina essa que se tornou adulta, tentou esquecer as marcas profundas e quis apenas ser feliz...

Anónimo disse...

demasiadamente fantasioso... ;)*

Anónimo disse...

Fantasioso?! Antes de mais tem de se ler as entrelinhas de tão maravilhosa obra... Apenas os olhos de alguém habituado à escrita saberá que fantasia e realidade são na verdade o mesmo... Tudo se confunde...