sábado, abril 01, 2006

Alegoria

As luzes de cores foscas e desbotadas, acesas pela velha televisão muda, variavam e, variavam em intensidade, intermitentes, nas paredes. Azuis vivos, vermelhos mortos e brancos doentes. De vinte em vinte minutos, um barulho de motor e vento cortado, penetravam o forte óvulo do silêncio. Um som de fundo ressonava em significados de chuva, contínua, pesada e deprimente. Que sossego... A cor da cidade, na noite, não negra mas laranja, desflorava frutuosamente as pobres, e lânguidas, singelas cortinas por feixes, desconcentradamente. O reflexo desse fruto de cor, ampliado por condenadas gotas em movimento descendente, agitava sombras. Um suicídio de ideia, não fugidio da mente e um cansaço infinito numa frágil, e forçada, paciência. Um basta, com sabor a firme e teor de molhado dentro de uma desistência, com incerteza de cobardia. Um peso de cabeça difícil de suportar por vivo ser.
O riscado chão de madeira, pedia a dança de um amor fechado e isolado. Só um sim de vida, do agente perturbador, acalmaria a interferência no par perfeito. Que bela a força desta união utópica, idealizada pela mente exclusiva de seres humanos únicos, belos e simplesmente complicados. Ou um.
A música continuava erosiva como um mar viciado em desfazer dunas. A tua presença continuava e continuava forçada e alimentada pela minha imaginação. Ainda há minutos estiveste a menos de um metro de mim e, ao mesmo tempo, a oito voltas ao mundo de distância. Os teus olhos atentos e agitados e velozes e lindos encobriam o teu estado nervoso. As tuas mãos, trabalhadoramente malvas, sustinham nas pontas leve casca de brilhar. Duas cabeças, separadas, trabalhavam em conjunto uma única possível ideia. Era incrível o barulho do momento e a quantidade de felicidade manifestada pelo envolvente. Todos, sem saberem, presenciavam o que não estava a acontecer. A vida deles era uma mera barreira. A barreira que impuseste e desejaste de primeiro contacto. Não precisava fechar os olhos para te sentir pensar em mim, provavelmente na minha bela modéstia. Mas tu não estás aqui. As horas continuam a passar. Se calhar estás onde tens de estar mas onde não gostarias de estar. Se calhar, fazes o que tem de ser feito. É a lei da continuação co-social e natural. Sei, que, neste momento, grandes e pesadas batidas te invadem levemente o corpo mas, a mim, são as tuas doces e pacificas melodias que arrasam e definham o físico.
Três da manha. Leio e relembro, recordando, tudo o que me disseste. Devagarinho encaixo peça por peça no que vi de ti real. Afogado em dúvidas tento desvendar o que sentias. Seria a tua agitação anormal? Terias ficado assim pela minha presença? Terias sido indiferente e esquecido que eu lá estava? Hum. Não pode ser. Não seria conciso com toda a nossa história. Que complicação! Reparei que, por vezes, tremias agressivamente como possível hiperactiva. Amar um bocadinho em construção progressiva? Mas, mas, onde, onde é que tu foste buscar essa teoria? Como podes ter bases cognitivas semelhantes às minhas? Até na tua conformidade grupal és igual. Falas, ris, olhas, tudo fazes, tudo, tudo fazes, mas, eles também não dão conta da tua verdadeira especialidade. Só eu, ali, vi o que realmente és. Não o que mostras ser. O que és! Tu não és uma rapariga. És Tu!
Apaguei a televisão. Quero ainda mais sossego luminoso. Quero deixar esta escuridão pesar sobre mim e adormecer-me nestas ideias e tristeza que me impregnei. Devagarinho, devagarinho, vou adormecendo ou acordando ou se calhar, já durmo há muito tempo. Os teus orgulhosos cabelos grandes pendiam de maneira helicoidal. Os teus olhos, de limites definidos a negro. Apetece-me rir de lembrar as apregoadas forças gigantescas de ambos e que no fim, se trituraram em simples e inocentes vergonhas. Duas presenças tão poderosas condenadas a terem medo sequer de um mútuo olhar. Espera um bocado. Já te continuo a contar o que sinto. Vou só acender uma vela.
Voltei. Obrigado por teres esperado. Sabes, o carro não me queria deixar vir embora. Conduzia-me sempre para pontos sem saída. Se calhar não acreditas mas, demorei uma hora a sair do estacionamento. Sinais? Não sei. Sabes que só acredito em coisas que vejo. Não consigo expor o meu pensamento ao transcendente. Tu consegues!
Somos iguais com limites diferentes. Esta frase ainda não me saiu do pensamento. Observavas, quando eu não olhava, mas, eu sentia o teu olhar pronto a fugir quando eu me virasse para ti. A vela brilha aqui no escuro…
Claro que tinha que fugir. Estavas à espera de quê? Tu sabias bem isso. Sou um desconfortável difícil de contentar. Aqui é tudo muito fácil não é? Banhamos as nossas raízes no sangue um do outro. Somos apoiados e seguros pelas nossas imensas forças de poder. Adorei ver o teu receio. Hum. Adorar não. Adorar, adoram-se os deuses não é? A tua insaciada busca pelas ideias dos outros sobre mim. Só agora deduzo que só pode denunciar o teu interesse em mim. Aliás segundo a lógica, tu estás mesmo interessada em mim ou então vou ser obrigado a declarar-me socioignorante. Talvez. Os caminhos… Pois… Os caminhos a seguir, é que realmente são ambiente hostil para mim… Não vejo bem o que tenho de fazer. É agora que falho? Ou ainda demoro mais um bocado? Começar deste modo foi bom, porque foi menos explosivo mas, por outro lado, não se cingiu ao meio-termo, ficou muito aquém de um verdadeiro encontro. Se calhar foi melhor assim. Não sei. Estou confuso, como sempre, mas, mais ainda dado a importância dos valores em questão.

Passou um dia. Actualização de pensamento. Afinal não tens tanta destreza selectiva como pensei. Foi engraçado confirmar que também não te apaixonas embora, se calhar, nem o saibas. Encontrei pela primeira vez os teus pontos fracos. Afinal não és assim tão forte. Tens o método e organização que esperei. Hoje mentalizei-me para a nova realidade. Sim. Como prometide declaro-me socioignorante. Eu não entendo muito bem as coisas. Não sei a razão pela qual tudo termina antes mesmo de começar. Sei uma coisa. A culpa é minha. Se calhar, como tu dizes, existem pessoas demasiado perfeitas para… Neste momento vejo as caras demoníacas espalhadas pela parede. Fui eu mesmo que as coloquei. Quem se teria dado ao trabalho de esculpir tais faces? Os pedestais continuam fortemente góticos como sempre em lembrança dos inícios dos tempos de memória. Seguro, com desdém, coisas, que muitas pessoas gostariam de ter, e pouso-as, desmotivado. Pois, tens medo, é normal. Sim, é difícil confiar, claro. Acho que também, não me importa. Lembras-te? O ritmo… A velocidade que iria começar e não podia abrandar… Sim. Abrandou. Definhou. Não tiveste culpa. Acredita que não. Não podes fazer o que não estás predestinada a fazer. Muito longe foste! Sinto-me frustrado por não te poder emprestar os meus olhos para compreenderes a minha forma de ver tudo. Adorei quando me disseste que havia muito trabalho a fazer quando te referias à nossa realidade. Pronto. Acho que não há muito a fazer e também já estou cansado de escrever. Eu nem sei bem se isto é verídico ou se é mais um conto da minha imaginação. Acho que sei. Acho que sabes. Os outros que pensem o que quiserem...

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