domingo, março 20, 2005

Pinhal

Sentado na varanda, de costas para o sol, vejo o fumo dissolver-se e escapar-se, por uma frincha da porta, para dentro de casa, arrastado pelo vento. Vislumbro, através do vidro escurecido pelo tempo e pela falta de limpeza, as minhas cuecas brancas imaculadas pousadas junto do resto da roupa agrupada na mala. Observo o propiciar do fim do cigarro. As últimas cinzas caiem-me sobre as calças azul-marinho. Largo o filtro e ele cai e rola até cair lá abaixo. Levanto-me e perco-me só mais uma vez naquela paisagem que marcou todos os meus dias. A perpétua oliveira continua a representar o seu espaço. As pedras permanecem imperecíveis, os gaios eternamente agitados no velho amieiro e os milhafres muito altos na ronda pelas presas. As águas correm monotonamente como sempre correram e correrão. Entro. O teu sorriso mal pregado na fotografia. Parabéns por conseguires. Fecho a mala. Hora de partir. Desço a escada, saio e pouso a mala no velho amigo e companheiro de quatro rodas. Sempre presente. Volto lá dentro, fecho todas as portas e portadas e desligo a água e a electricidade. Hora de ir. Solto um último suspiro para aquele ambiente que tão bem me acondicionou no passado. Saio cabisbaixo. Tempo de ir. Dentro do carro ligo a música e começa a viagem. Paro na primeira gasolineira e atesto o depósito pois será bem necessário. Opto por seguir pelas estradas nacionais de modo a poder parar e conhecer novos sítios. Janelas e tejadilho aberto, música alta e um sorriso cansado agrafado na minha face. Aproximo-me de Aveiro e sigo em frente. Quilómetros de mundo mudam sucessivamente no meu horizonte. Uma bela rapariga de cabelos negros, olhos verdes e sardas pede boleia na berma junto a duas grandes malas e uma de tamanho mediano. Contrariando o hábito, encosto ao passeio. Observo a facilidade com que coloca as malas na bagageira. Certamente estão vazias. Certamente os interesses dela não seriam o transporte. Possivelmente iria ser assaltado. Muito não levaria. Possibilito a sua entrada. Reconforta-se no banco. Girando para mim e, sorrindo encantadoramente, atira-me um fabuloso olá. Sorri para ela e olhando para a frente, recomecei a viagem. Não me perguntou para onde me dirigia nem me disse qual o seu destino. Era claro que algo estaria planeado acontecer-me mas, não importa, que aconteça. Passando por uma estrada resguardada por ancestrais plátanos ela olhou para mim e em mim fixou o olhar. Espantada com tanto silêncio perguntou meu nome. Desviei o olhar para ela, voltei a sorrir e ela também sorriu retraída. Olhou de novo para a frente convencida numa possível mudez minha. Era mesmo deslumbrante e a sua voz era aconchegante. O olhar distante revelava agora uma certa preocupação. Todo o seu determinismo havia sido abalado. A pressão crescia no seu pensamento. Premeditava as suas vontades. Propiciava-se forçadamente o seu acto. Suavemente tirou uma arma do bolso do leve casaco de pele tingido de branco. Era uma Star calibre 6 de 35 mm, falsificada. Fora em tempos uma pistola de alarme e agora, ilegalmente transformada, permitia o uso de balas. Gritou ameaçadoramente, com a arma em riste, “continue e com juizinho”. Levantando os braços e bocejando, espreguicei-me melancolicamente. Voltei a segurar o volante e olhei para a rapariga sorrindo uma terceira vez. Desta vez, não recebi outro sorriso, apenas um olhar que denotava uma desconcertação terrível pelo meu procedimento despreocupado. Procurando e descobrindo com o olhar, ordenou-me que entrasse num pequeno atalho de terra batida. Obedeci. Aos solavancos chegamos a uma clareira na orla de um pinhal, devia-mos estar perto de Leiria. Gritou para eu parar. Gritou para eu sair do carro e saiu em seguida. Tremendamente bela. Não deixando de me observar abriu a bagageira e retirou umas algemas e uma corda. Atirou-me as algemas, disse para eu fechar um dos aros, pôr os braços para trás e esperar e assim o fiz. Dirigiu-se a mim sempre com a arma em punho. Fechou o segundo aro imobilizando-me os braços. Dirigiu-me até ao banco de trás e sentou-me. Descalçou-me, tirou-me as meias e as calças. Rasgou-me a camisa azul aos quadrados brancos. Olhei em volta e sorri com aquela situação bizarra de me encontrar quase nu, no meio de um pinhal qualquer, desconhecido e acompanhado de uma bela mulher armada. Ela, com um sorriso satisfeito, percorria-me o corpo com o olhar, parecia gostar do que via. Olhou para mim e sorrimos um para o outro. As suas mãos vieram na minha direcção e uniram-se atrás do meu pescoço. Os seus dedos, com a maior das gentilezas, brincavam, enrolando e desenrolando os meus leves caracóis e assim ficou muito tempo, fitando-me sempre os olhos. Não entendia qual a razão para tudo aquilo. Não parecia querer roubar nada e para prazer, uma mulher tão atraente não precisaria de raptar um homem. Estava frio mas, a minha pele fervia. Chegou-se a mim e devagarinho beijou os meus lábios imóveis. Beijou. Beijou. Continuou a beijar com um nível de agressividade crescente. Os dentes cravaram-se no meu lábio inferior. Senti um leve sabor agridoce, sinal que tinha conseguido romper-me o lábio. Sangue desprendia-se agora de mim aos pouquinhos. A sua língua não largava a minha ferida como se estivesse a alimentar de mim. A sua língua apoderou-se da minha boca. Parecia querer sufocar-me. Imóvel, a minha respiração tornava-se mais intensa. Só conseguia respirar pelo nariz. Sentindo isso apressou-se a apertar-mo com os dedos finos e elegantes. A língua enorme continuava a chicotear dentro da minha boca. Senti a respiração nasal dela quente e ofegante. Inclinei um pouco a minha cabeça. A minha homeostasia entrara em estado crítico. Mais um pouco e teria que usar a minha força para a afastar e poder respirar. Afastou-se voluntariamente. Miramo-nos com respirações descontroladas e desesperadas. Um fio sangrento escorrega pelo meu queixo. Aproximou-se e absorveu-o numa lambidela. Excitado com o fascínio pelo meu sangue aguardo a tua próxima reacção. Sentas-me de novo no banco e empurras-me deitando-me. Ouço “não te mexas!”. Sinto-te procurar algo na mala. Abres a porta atrás da minha cabeça. A tua cabeça paira sobre a minha, a sorrir. Beijas-me muito calmamente. Os teus lábios fixam-se aos meus. Tens na mão um pano de seda negra. Obturas-me a visão, vendando-me. Quando se desliga um sentido, a energia desse sentido distribui-se pelos outros, fortificando-os. Uma substância qualquer moldou-se confortavelmente aos meus ouvidos. Uma tentativa de me isolar do mundo? Uma mole leve e suave apertou-me o nariz. Esperei, com as mãos e pernas presas, no escuro silêncio. Sentia-me desprotegido e nas tua mãos. Assim fiquei mais de uma hora. Não te ia estragar os planos. Se calhar, já estás bem longe. O meu corpo sobre os meus braços é bastante incómodo. Imóvel, sinto uma fonte de calor perto da minha cara. Destapas-me o nariz e um aroma intenso e marcante invade-me. Concluo ser o odor mais profundo do teu corpo. Volto a sentir-te apertar-me as narinas. Sinto a palma da tua mão deslizar pelos pêlos do meu peito. Brincas arrancando um por um de vez em quando. Brincas com os meus mamilos, desenhando círculos com os dedos, em sua volta e terminas com uma mordidela. Intervalo. Aguardo algo sem saber o quê. Inesperadamente, um pingo fervente cai, solidificando no meu peito. Estavas-me a queimar com cera? Mas que tipo de mulher tem prazer com tal perversidade? Outro pingo marca a minha pele e mais outro. Dá-te prazer a humilhação? Continuarei imóvel. Não vencerás. Sairás perdedora do jogo que tu própria criaste. Continuas, incessante. Pontos localizados de ardor rompem pelo meu corpo. Toda a dor que sinto não sai do meu pensamento. Não vês em mim o mínimo sinal de mágoa. Desgraçada! Mesmo no mamilo! Que malevolente! Sinto pedaços de cera acumulados sobre mim em camadas. Novo intervalo. Fico temente pela nova surpresa que certamente me espera. Brutamente, tiras-me os tampões dos ouvidos e arrancas-me a venda. Já quase tinha anoitecido. Vislumbro-a nua, corada, esbaforida, desesperada e descontrolada. A bater no meu peito, grita-me “porque não sofres tu? queimei-te e nem reclamas-te, nem sequer um movimento teu? porque não és como os outros? porque não me falas? és mudo? Sorrio para ela. A venda é me novamente colocada. No intervalo. Ouço movimentos na mala do carro. Sinto uma placa, uma banda metálica gelada a tocar-me no pescoço. Uma faca? Sim, uma faca… Uma faca que vai percorrendo o meu corpo com grande destreza. Numa onda sucedânea os meus pelos tornaram-se hirtos, num arrepio total. A faca continua pelo meu ventre abaixo e num ápice dois cortes nas cuecas, possibilitam a minha completa nudez. Sinto uma mão a agarrar-me. Sinto uns lábios a beijar-me. Sinto uma boca a engolir-me. Sinto um corte doloroso. Sinto-a novamente a sugar-me. A sugar-me. A sugar-me. Não podia aceitar mais o jogo. Tinha atingido o limite! Usando a minha força, rebento as algemas recorrendo aos meus braços, poderosos. Arranco as cordas que me envolvem as pernas. Tiro a maldita mola que me aleija o nariz. Arranco a venda. Olho, raivoso e nu, para a rapariga assustada com a minha súbdita mudança brusca. Agarro nela e deito-a em cima do carro, com a mão no centro do seu peito e berro-lhe “não entendes que não podes fazer sofrer quem já tudo sofreu? porque me escolheste?”. Extasiada e alienada olha para mim atenta e com a boca manchada de sangue, engole em seco e responde-me baixinho “adoro a tua voz”. O quê? Adoro a tua voz! E eu não te escolhi, apenas foste o primeiro a parar! Se tivesse escolhido não teria tido tanta sorte como tive! Que situação de loucos, estou aqui em cima do carro, nua e de pernas abertas, de noite, num pinhal desconhecido, vítima da minha própria vítima, sem rumo nem destino e perdidamente apaixonada pela tua existência! Que vais fazer? Chamar a polícia? Não. Vou apenas vestir-me porque está muito frio. Veste-te também. Escolhi a roupa da mala, vesti-me e com a mala dos cuidados médicos tratei o corte. As cuecas brancas tingiram-se levemente de encarnado. Fechei a mala e vi-a vestida e sentada no banco ao lado do condutor. Onde vais? Contigo! Onde? Para onde fores! Está bem… Para a capital? És tu que mandas em mim agora! Decide! Sou eu que mando em ti? Então porquê? Por ter uma voz que te agrada? Não. Mandas em mim por saber que existes. Hum. Está bem… Ligo o carro frio e arranco derrapando na areia e caruma do pinhal. Olho para ti e pergunto, sorrindo, “sabias que és muito bonita e atraente?”. Ela sorri e volta a brincar com os meus caracóis, perto ao pescoço, e diz “eu acho-te lindo e atraente!”. Continua a enrolar e desfiar os meus cabelos. Chegamos à entrada para a estrada nacional e nela entramos e seguimos sem rumo predefinido. Uma dúvida rompe em mim e sem poder resistir lanço no ar, “nos teus planos, que me farias no fim de satisfazeres as tuas perversidades?”. Sorrindo… Desenlaçando os caracóis… Aproxima-se… Trinca-me a orelha e sussurra, sibilante… Matava-te!

12 comentários:

Anónimo disse...

É por isso que eu não dou boleia a ninguém :p


Não sabes quem foi? ;)

Unromance disse...

Eu diria que aos olhos de quem sofre por amor, a dor fisica é menos dolorosa. E vendo que também te ias deixar levar pelo que a vida te proporcionasse não ias contrariar a bela e atraente rapariga :) Os teus post nunca vão deixar de ser compridos e nunca vão deixar de envolver quem os lê.. Beijo*

Anónimo disse...

Parece me que o meu ultimo comentario no "sentes?", fez alguns efeitos... É sinal que me percebeste... Já nao ha nada aqui para sofrer.

Mal sabe ela que é do mal que nos alimentamos... mal sabe ela que o mal a nossa força...

Anónimo disse...

Vou começar a vir aqui mais vezes. prometo que a partir de agora "te vou" ler.
Obrigada por ajudares a criar ao meu blog.

Anónimo disse...

epá!!!!! está espetacular!! gostei mesmo!!!! já li e reli!! eu sou supeita no que vou dizer! :P, mas é um texto super envolvente!!! **** gosto imenso de te ler :) ^Erina^

Anónimo disse...

" (...) “nos teus planos, que me farias no fim de satisfazeres as tuas perversidades?”. Sorrindo… Desenlaçando os caracóis… Aproxima-se… Trinca-me a orelha e sussurra, sibilante… Matava-te!"

De génio!!!

Anónimo disse...

Porque és sempre tão macabro?

Anónimo disse...

Porque és sempre tão macabro? Mas escreves muito bem.
Não apetece parar de te ler.

Anónimo disse...

Bem... Já tinha visto a URL deste blog diversas vezes, mas nunca tinha vindo até cá... Não sou muito dado a blogs, para dizer a verdade.

Este teu blog é mais do que uma simples biblia-da-cusquice, como eu costumo dizer. É quase livro; cada post tem a sua história e uma intenção, uma mensagem...
Está excelente! Se eu não soubesse que não eras normal, pensava logo que tinhas ido copiar isto de algum lado, mas como se como és, ou como pareces ser, acredito mesmo que o tenhas escrito cada palavrinha.. :P

Parabéns, está de génio, mesmo! Podes contar comigo para ir passando por cá mais do que o 'normal'. ;)

Keep up the great work!

Sobre este post, 'Pinhal', só te digo que não vale a pena dizer nada. Ele vale por si na sua excelência. Muito bom. :)

[][] Osidian

Anónimo disse...

passei por aqui e... deliciei-me com estes textos. parabens!

mizz_lina disse...

lindo***

Anónimo disse...

quem ja tudo sofreu...ainda pode sofrer mais!o começar de um novo dia é como o virar de uma pagina,nunca sabemos o que vamos encontar.o diabo esta sempre a espreita,neste caso o diabo desleixou se.nunca devemos ter medo de nada,pra tudo ha uma solução...nem que seja a morte :)
{loba}